Há vários anos perdi o encanto
pelo futebol, encanto conquistado pelo selecionado de Telê Santana na Copa de
82 na Espanha, quando aos oito anos, sem gosto algum por futebol, pude
testemunhar a que ponto um esporte pode se fazer espetáculo. Abençoado pela
eternidade seja o mestre mineiro.
Ultimamente, porém, não tenho
mais sequer o interesse. Escândalos de arbitragem, corrupção de dirigentes, a
politicagem nas seleções dos mundiais, violência nos estádios, o futebol de
resultados, enfim, o espetáculo convertido em balcão de negócios. Já não sei
que jogos meu time disputa, qual a classificação, quem foi contratado ou
dispensado. Muito menos ainda sei a respeito da Seleção.
Embora considere trágico, além de
comprobatório do acerto no meu desinteresse pelo futebol, a história do garoto
boliviano morto pelo sinalizador lançado da torcida Gaviões da Fiel era algo ao
qual eu pretendia ficar ao largo. Triste, muito triste, o que fazer?
Ao tomar conhecimento do caso, li
as notícias a respeito, me indignei e vi alguns comentários, só para me
certificar de como são irrelevantes e fora de propósito. A solução é simples
(sempre é), mas a impotência que se constata quando observamos quem são os
responsáveis por aplica-la, já me impelia novamente para a margem do assunto.
Quando, no entanto, três distintos
senhores de meia idade, no interior de Santa Catarina, encontram-se em uma
agência bancária e, na conversa que se segue sobre o caso, concluem que a
responsabilidade era “unicamente da administração do estádio boliviano e que,
afinal de contas, tratou-se apenas de um boliviano, como podia bem ser também
um paraguaio”, aí não dá! Para tudo!
Talvez o que mais tenha feito com
que eu me afastasse do mundo do futebol seja esta incrível capacidade de
inúmeras pessoas caracterizarem outras apenas por sua identificação a um
determinado grupo de 11 marmanjos e seus sucessos e insucessos em projetar
através de três hastes metálicas uma esfera sintética.
Eu entendo bem do que estou
falando. Tive meu momento de submissão à esta forma de pensar reducionista. Minha
identificação futebolística, que começou com a Seleção de 82, projetou-se, por
intermédio de meu pai, para o Sport Club Internacional. Por anos convivi com o
fraco desempenho do clube e assimilei, sem bem entender o porque, um estado de
humilhação por seguidos insucessos do clube nas diversas competições que
passou. Nos últimos anos, contudo, pude experimentar as “glórias” de inúmeras
conquistas, todas que se podia almejar. Tornei-me sócio-torcedor e acreditei na
história de co-partícipe dos triunfos do clube.
Eu passei de espectador para
torcedor, aprendi a extrair das cores de uma camisa o completo caráter de
indivíduos que nunca conheci. A paixão pela camisa me ensinou a odiar. Não
cheguei ao ponto da agressão física, mas comecei a ver e perceber que, estando no
estádio, o gol do meu time não era um pretexto para a alegria tão somente, mas a
razão essencial para agredir verbalmente o torcedor adversário, para diminuí-lo
na vã tentativa de me sentir melhor.
Mas nesse tempo, o que pude
aprender mesmo é que os instantes de euforia e alegria após cada uma dessas
conquistas, o alívio que sobrevinha – colocado em perspectiva – são fragmentos
mínimos em meio às agonias, sofrimentos e angústias, todas as dúvidas de
fracassos que rondaram continuamente, como em mar aberto, do início até o
último apito do juiz, todas as trajetórias que acompanhei.
Como pode alguém tomar como seus,
os triunfos e fracassos de 11 indivíduos que se batem contra outros 11
indivíduos em 90 minutos de uma noite de quarta? Como pode alguém pautar sua
vida e, eventualmente a vida de terceiros, pelo que 22 homens fazem com uma
bola, em um retângulo de grama?
Como podem tantos milhões de
seres humanos comprometer suas forças, suas energias, seus recursos, sua
atenção, seu poder criativo e sua capacidade de amar unicamente para criar
divisões artificiais entre si?
Na época em que o Internacional
ganhava pouco ou nada eu me dizia Colorado, mas era incapaz de dar a escalação
do time, não saberia dizer mesmo qual era o melhor jogador. Ainda foi uma época
em que eu era o que Telê Santana me ensinou a ser, um apreciador do futebol. Eu
era um Colorado que admirava ver o São Paulo do Telê, que gostava de ver pelo
espetáculo que dava.
O Inter vitorioso, por um breve
momento, me tornou um torcedor sectário, incapaz de apreciar espetáculos. O São
Paulo que um dia admirei, tornou-se o arqui-rival odioso e, com ele todos os
são paulinos, aliás tão tricolores como os gremistas. Importava vencer e triunfar,
para além da humanidade das pessoas que vestem camisas de cores diferentes.
Não gostei de me tornar torcedor,
de simplificar a riqueza de uma pessoa a um brasão no peito de uma camisa e,
por esta razão, o futebol perdeu seu brilho para mim. O futebol não tem mais
espaço para o espetáculo. Esporte? Não, não mais. Há muito tempo que não é
assim. Quem quer se iludir que fique à vontade. O futebol hoje é Guerra! Uma
competição selvagem, de sobrevivência. O torcedor quer ver seu time se impor,
vencer e conquistar, pouco lhe interessando que sua agremiação apresente um bom
espetáculo. A essência tornou-se ornamento incidental. Afinal, nesse triunfo o
torcedor vê triunfar a si mesmo.
O torcedor odeia.
O irmão de camisa é acobertado se
comete um erro, a virtude do rival é ignorada. O torcedor é um julgador
insaciável que odeia a justiça, pois absolve e condena pelas cores da camisa.
Limita sua criatividade e seu amor às vazias “qualidades” da camisa. Todo tipo
de vil acusação, reducionismos e generalizações inúteis. O torcedor é um
generalizador e, como todo bom generalizador, tem o raciocínio estreitado por
esta postura preguiçosa. O torcedor ignora, fica cego à riqueza da diversidade
do espírito humano. Ele é um “quadrado” preso ao seu limitado universo da cal.
Estaria exagerando?
Quando os respeitáveis senhores
de meia idade de Santa Catarina, concluem, no banco, que o torcedor corintiano
não é o verdadeiro responsável, estão absolvendo pela camisa. Os tolos não
percebem que com isso apenas reforçam essa lógica abominável. Eles se equiparam
ao assassino e dão razão aos rivais que afirmam – na mesma e estúpida lógica de
ódio – que todos os corintianos são bandidos, não por ato, mas por cumplicidade.
Quando vou ao cinema ver um filme,
vou para apreciar um espetáculo. O ator esteve bem? A história é boa? O diretor
conseguiu conta-la de forma criativa? Pra minha felicidade, que gosto muito mais
de cinema do que jamais pude gostar de futebol, nunca vi torcedores do Gene
Hackman se estapeando com os do Jack Nicholson para decidir quem fez o melhor
papel, ou fãs do Hitchcock disparando sinalizadores sobre os apreciadores do
Clint Eastwood quando este recebe um Oscar.
Isto não acontece por que é um
espetáculo e pessoas que são espectadores apreciam as qualidades de trabalho, a
capacidade de seres humanos em produzir beleza e reflexão. O torcedor não, o
torcedor apenas odeia.
Aos senhores catarinenses de meia
idade que conversavam no banco, se querem raciocinar como torcedores e considerar
o homicídio do jovem boliviano de responsabilidade dos administradores do
estádio pela falta de fiscalização e revista sobre os torcedores corintianos, e
para todo aquele que pensa da mesma maneira responda, baseado nesta premissa:
Sobre quem recai a responsabilidade,
se um sujeito armado invade sua casa e assassina seu filho e tranquilamente vai
embora? Sobre você?
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