quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Memória e identidade

Já se disse que ausência de evidência não é evidência de ausência. Por outro lado, quando se faz necessário afirmar algo, via de regra, esse algo não se faz presente. Por exemplo, quando alguém diz que é feliz. Quem é feliz é feliz e ponto, não fica por aí anunciando isso.
O caso da memória a este respeito é revelador. Quando a humanidade não tinha escrita, e ainda hoje é possível observar isto em algumas sociedades silvícolas, as tradições, os mitos, os grandes acontecimentos coletivos e individuais eram passados verbalmente e dependiam de uma capacidade de memória, pra mim, assombrosa. Quando se passou a registrar a história através da escrita e, depois, através da imagem, especialmente a fotográfica, esta capacidade tornou-se obsoleta. Foi um grande passo em termos dos conhecimentos adquiridos e disponíveis, inegável. Mas penso que, individualmente, seria como se deixássemos de utilizar, sei lá, os braços, os olhos, é uma capacidade humana abandonada, que fatalmente se atrofia. Nossa memória tornou-se curta, mas não é um problema, afinal em algum lugar está tudo registrado, certo? Hoje somos mais ágeis, por que não precisamos reter informações, elas estão disponíveis em registros externos a nós. Parece bom! Então éramos como um processador 386 com um grande banco de memória. Agora podemos acreditar que somos um super processador apenas com memória RAM, aquela imediata. Somos instados à flexibilidade absoluta. A informação e a capacidade de jogá-la de um lado para outro tornou-se mais importante que a experiência e, sobretudo, a memória da experiência. Pegue-se um aniversário qualquer e provavelmente haverá quase tantas câmeras quanto convidados. Uma criança do século XXI já é capaz de ter o registro de sua infância quase em tempo real. Ela pode viver até os quarenta, e passar os quarenta restantes assistindo o que fez nos quarenta anos anteriores. Ótimo isso!
Ao conhecer Paris, fiz com minha amiga Marília um passeio de barco pelo Sena. Um turista oriental (não sei se japonês, chinês, coreano) filmou todo o trajeto, mas não tirou os olhos do visor da câmera. A memória que ele precisa é da fita em que está registrada sua experiência do passeio. Baita evolução!
Tornamo-nos criaturas do instantâneo, cada vez mais nossa memória se dissocia de nós mesmos.
A tragédia é que as memórias constituem nossa identidade. Abrir mão da memória é renunciar à identidade. E isso parece-me tão contemporâneo, tão mudérrno!
Faz tempo que perdemos a memória coletiva, agora estamos em vias de perder a memória pessoal. Ao mesmo tempo acentua-se exponencialmente a vida individualista. Volto ao que dizia pouco antes, quando algo precisa ser afirmado, é por que está em falta. Quanto mais individualismo, menos identidade. E menos, muito menos memória.